O beijo do fuzil




O beijo do fuzil

Tem gente que nasce em berço esplêndido.

Tem gente que nasce virada pra lua.

Marisa nasceu preta e favelada.

Virou doméstica, diarista, ambulante e foi se virando que conseguiu dar pro filho um casaco e um boné de marca. 

Tem menino que quer ir pra Disney. 

Tem menino que quer ir num jogo da Champions. 

O dela queria vestir o boné e o casaco da vitrine. 

Foi o vizinho que acordou Marisa. Corre lá que os PMs tão dando um esculacho no seu filho e na sua filha. 

Marisa salta da cama e chega na cena de pijama. Meus filhos não são traficantes, não senhor. Essas roupas de marca eu comprei na prestação. Sou trabalhadora, aqui não tem nenhum bandido.

A roupa é do shopping, mas e o radiocomunicador, heim?

Tem rádio aqui não, senhor.

O PM resolve aplicar sua própria justiça. Manda Marisa bater nos filhos. Senta mão neles, mas senta forte, que senão batemos nós.

Marisa nega. Nunca bati em filho meu, não vai ser agora, senhor. Eles não fizeram nada.

Os PMs ficam putos. Um deles vem por trás e dá uma coronhada de fuzil na nuca de Marisa. Ela cai e eles partem. Piranha.

Os filhos levam a mãe pra casa, pra UPA, pro hospital e de lá pro velório. Só não teve enterro porque a PM quer apurar se o aneurisma que a matou foi decorrência do trauma causado pelo beijo do fuzil.

O processo está na gaveta, assim como o corpo de Marisa.

Tem gente que morre de amor.

Tem gente que morre de tédio.

Marisa morreu de Estado.

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